Daniel Filipe (1925-1964)

 

Procurei mais informações sobre o poeta Daniel Filipe, porém praticamente nada avança sobre o que está na Wikipédia, que aqui transcrevo e adapto:

Daniel Damásio Ascensão Filipe nasceu na Ilha da Boavista, Cabo Verde, em 11 de dezembro de 1925. Veio para Portugal ainda criança, onde acabaria por concluir o Curso Geral dos Liceus. Mais tarde, foi co-director dos cadernos Notícias do Bloqueio, colaborador assíduo da revista Távola Redonda e do jornal Diário Ilustrado, e também realizador, na Emissora Nacional, do programa literário Voz do Império e revista luso-brasileira Atlântico. Combateu a ditadura salazarista, sendo perseguido e torturado pela PIDE. Trabalhou na extinta Agência-Geral do Ultramar e na área jornalística. Morreu novo, em 1964, mas deixou uma obra consistente marcada pelos sentimentos de solidão e exílio.

Publicou as seguintes obras: Missiva (1946), Marinheiro em terra (1949), O viageiro solitário (1951), Recado para a amiga distante (1956), A ilha e a solidão (1957), O manuscrito na garrafa (romance, 1960), A invenção do amor (1961), Pátria, lugar de exílio (1963).

Como afirma o mesmo texto, “Grande parte da poesia de Daniel Filipe destaca-se pelo combate ideológico e pelo comprometimento social, o que lhe valeu o estigma de poeta neo-realista”. E, como toa boa verdade, ela é apenas meia. Escolhi um poema que não encontrei na internet, o último de seu último livro, Pátria, lugar de exílio, que mostra uma faceta forte de sua obra, a celebração do amor e do sexo. Aqui temos uma espécie de novo gênesis no corpo da mulher amada, em versos que por vezes flertam com o Cântico dos cânticos ou com a tradição surrealista, sem estancar num modo de elocução.

Aconselho ver o post da Modo de usar e co., onde Ricardo Domeneck também pôs um link com o pdf do livro A invenção do amor. E também o post da Escritas, com obras de outros livros.

guilherme gontijo flores

* * *

Ilha em corpo de mulher

I

Calo o segreto em tua boca, o mar
de súbito acontecido como a primeira vez
Coxas ágeis esperam-me, flexíveis membros,
sinuosas linhas de pescoço, pálpebras esquivas,
juvenis artelhos. E tudo isso frente ao mar antes da própria infância,

espelho partido, luz inesperada,
mistério celular, alvíssimos caninos
perfurando a ácida maçã, prolongando
a claridade do dia.
A paisagem arenosa, quase vítrea, os dedos na raiz
das coisas, absurdo revelar da face inteira
do adolescente amor.

Assim permitem os deuses que vivamos o tempo, transmudados
na desconhecida flor ou purpúreo animal, músculo, ósseo cerne
da mágoa, agora musical, agora líquida,
ainda sombra, no entanto, pecado voluntário,
transbordante rumor, insólita presença
em teu nome:
MARIA

II

Ergues-te nupcial, alheia ao lugar exacto onde se inserem
teus nervos, onde espreitam o momento de existir
ignorados espasmos. Só com o estender de braços, reinventas
o mundo, reconstróis, pedra a pedra, o universo familiar,
conhecido antes da noite. Dizes: aqui está uma flor, uma árvore,
      um pássaro, o regato.
E a flor até aí inexistente
e a árvore até aí inexistente
e o pássaro e o regato até aí inexistentes,
genesiacamente surgem do teu desejo de tê-los
e existem por ti e contigo
e são, ao teu redor, o muro tutelar
e necessário.

III

A asa é a tua concha petrificada muito antes de Cristo
o refúgio isolado no seio da montanha,
o lugar geométrico que o mar transforma em ilha.
Cola-se à tua pele como se lhe pertencesse,
não como um simples tecto que paredes sustentam,
mas como formação óssea de ti mesma expelida.

Por isso guarda as tuas formas e o teu corpo preenche inteiramente o seu espaço interior.
Por isso os teus cabelos recebem o toque mágico da chuva matinal
como se nada houvesse entre eles e a presença violenta dos deuses.

IV

Sinal na manhã fértil, teus quadris harmoniosos
de fogosa gazela, enchem-me de inexplicável júbilo
e sombrio desespero.

V

De novo o espelho, a imagem facetada,
o dia multiplicado, o número secreto da besta apocalíptica.
De novo a serena postura que aprendeste dos deuses, por um outono agreste e solitário.
De novo a tua voz ondulando o silêncio,
desfolhando o riso sobre as águas,
que deixam marcas de sal no teu corpo húmido de amor.
De novo o perfume que trouxeste contigo do outro lado da terra
e precede teus passos,
teu riso,
tua voz.

VI

Estás ainda presente na curva do colchão.
No travesseiro desalinhado. Naquele gesto
de deixar a cortina cair sobre o teu pudor adolescente.

VII

Aponto geograficamente os rios, os acidentes
do teu corpo. Co[n]to-os, desenho-os de cor no mapa imaginado,
navego até às nascentes, percorro as sendas das montanhas,
descubro dos teus olhos o horizonte azul, o mar
em tuas coxas com lúcidos golfinhos e uma serei
adormecida, a leste.

 

 

Deixe um comentário