Poesia e revolução, por Sophia de Mello Breyner Andresen

Gostaríamos de agradecer a Leonardo Gandolfi, que escavou esta fala de 1975 de Sophia de Mello Breyner Andresen, e a Tarso de Melo que nos apresentou, além de dar as devidas graças a Claudia Abeling, que fez a gentileza imensa de transcrever todo o texto a partir da seguinte referência: In: Sophia de Mello Breyser Andresen. O nome das coisas. Lisboa: Moraes, 1977. 1ª ed.

Guilherme Gontijo Flores

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Poesia e revolução

                  O amor positivo da vida busca a inteireza. Porque busca a inteireza do homem a poesia numa sociedade como aquela em que vivemos é necessariamente revolucionária — é o não-aceitar fundamental. A poesia nunca disse a ninguém que tivesse paciência.

                  O poema não explica implica. O poema não explica o rio ou a praia: diz-me que a minha vida está implicada no rio ou na praia. Como diz Pascoaes:

                                    Ah se não fosse a bruma da manhã

                                    E esta velhinha janela onde me vou

                                    Debruçar para ouvir a voz das coisas

                                    Eu não era o que sou

                  É a poesia que me implica, que me faz ser no estar e me faz estar no ser. É a poesia que torna inteiro o meu estar na terra. E porque é a mais funda implicação do homem no real, a poesia é necessariamente política e fundamento da política.

                  Pois a poesia busca o verdadeiro estar do homem na terra e não pode por isso alheiar-se dessa forma do estar na terra que a política é. Assim como busca a relação verdadeira do homem com a árvore ou com o rio, o poeta busca a relação verdadeira com os outros homens. Isto o obriga a buscar o que é justo, isto o implica naquela busca de justiça que a política é.

                  E porque busca a inteireza, a poesia é, por sua natureza, desalienação, princípio de desalienação, desalienação primordial. Liberdade primordial, justiça primordial. O poeta diz sempre:

                                    “Eu falo da primeira liberdade”

                  Dessa unidade fundamental da liberdade e da justiça o poeta formou o seu projeto oposto à divisão.

                  Se queremos ultrapassar a cultura burguesa — ou seja o uso burguês da cultura — é porque vemos nela o reino da divisão, o fracasso do projeto da inteireza. Sem dúvida grandes poetas nasceram e criaram dentro do mundo da cultura burguesa. Mas sempre viveram esse mundo como exílio e viuvez, como poetas malditos.

                  A arte da nossa época é uma arte fragmentária, como os pedaços de uma coisa que foi quebrada.

                  “Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir”, disse Fernando Pessoa que aqui, no extremo ocidente, percorreu até seus últimos confins os mapas da divisão e letra por letra os disse.

                  E caminhar para a frente é emergir da divisão. É rejeitar a cultura que divide, que nos separa de nós próprios, dos outros e da vida.

                  Sabemos que a vida não é uma coisa e a poesia outra. Sabemos que a política não é uma coisa e a poesia outra.

                  Procuramos o coincidir do estar e do ser. Procurar a inteireza do estar na terra é a busca de poesia.

                  Por isso rejeitamos o uso burguês da cultura que separa o cérebro da mão. Que separa o trabalhador intelectual do trabalhador manual. Que separa o homem de si próprio, dos outros e da vida.

                  E porque desalienar, conquistar a inteireza de cada homem é a finalidade radical de toda a política revolucionária, o projeto de uma política real é por sua natureza paralelo ao projeto da poesia. Mas olhando com atenção vemos que a tarefa específica da política é criar as condições em que a desalienação é possível. Em rigor, a política não cria a desalienação, mas sua possibilidade.

                  É a poesia que desaliena, que funda a desalienação, que estabelece a relação inteira do homem consigo próprio, com os outros, e com a vida, com o mundo e com as coisas. E onde não existir essa relação primordial limpa e justa, essa busca de uma relação limpa e justa, essa verdade das coisas, nunca a revolução será real.

                  Pois é a poesia que funda. Por isso Hölderlin disse: “Aquilo que permanece os poetas o fundam”.

                  E por isso a política não pode nunca programar a poesia.

                  Compete à poesia, que é por sua natureza liberdade e libertação inspirar e profetizar todos os caminhos da desalienação.

                  E quando a palavra da poesia não convier à política, é a política que deve ser corrigida. Por isso é da verdade e da essência da revolução que sempre a poesia possa criar livremente seu caminho.

                  E é muito importante que se compreenda claramente que a arte não é luxo nem adorno. A história mostra-nos que o homem paleolítico pintou as paredes das cavernas antes de sabe cozer o barro, antes de saber lavrar a terra. Pintou para viver. Porque não somos apenas animais acossados na luta pela sobrevivência.

                  E se a política deve desalienar a nossa vida política e a nossa vida econômica, é a poesia que desaliena nossa consciência.

                  Porque propõe ao homem a verdade e a inteireza do seu estar na terra toda a poesia é revolucionária.

                  Por isso a forma mais eficaz que o poeta tem de ajudar uma revolução é ser fiel à sua poesia. Escrever má poesia dizendo que se está a escrever para o povo, é apenas uma nova forma de explorar o povo.

                  Quem está realmente empenhado num país melhor e numa sociedade melhor, luta pela verdade da cultura. Aquele que é conivente da mediocridade é inimigo de uma sociedade melhor, mesmo que apregoe grandes princípios revolucionários. A revolução da qualidade é radicalmente necessária a uma revolução real.

                  Onde a poesia não estiver nada de real pode ser fundado.

                  Não é por acaso nem por uma particularidade do seu temperamento que Mao Tsé-Tung é poeta. Não é por acaso que Marx e Trotsky amaram a poesia. A poesia é primordial e anterior à política. Por isso nenhum político por mais puro que seja o seu projeto pode programar uma poética.

Mas nenhuma revolução será real se a poesia não lhe for fundamento e não permanecer sua irmã.

Mas da participação na revolução do escritor, cada escritor deve decidir por si. Cada um pode propor o seu caminho ou sua hipótese aos outros sem que ninguém seja obrigado a segui-lo. No entanto, há alguns princípios que me parecem objetivamente intrínsecos à condição do escritor. Esses princípios são:

— Lutar contra a demagogia que é a degradação da palavra. Como disse Malarmé “dar um sentido mais puro às palavras da tribu” é uma missão do poeta.

— Lutar contra os slogans. Um provérbio Burundi diz: “Uma palavra que está sempre na boca transforma-se em baba”.

— O escritor como todo homem consciente deve exercer uma ação crítica. E deve lutar por um ambiente em que a crítica seja possível. Assim, neste momento o escritor deve lutar por um ambiente são — isto é por um ambiente onde aquele que critica não seja acusado de reação ou de fascismo.

— Lutar contra a promoção do medíocre. Lutar desde já, imediatamente, por uma revolução de qualidade. E, porque queremos que a cultura seja posta em comum, lutar pela revolução da qualidade em todos os meios de comunicação social.

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Na raiz da sociedade capitalista está o uso burguês da cultura que separa o homem de si próprio, dos outros e da vida, que divide os homens em trabalhadores intelectuais e trabalhadores manuais. Na raiz da sociedade capitalista está a cultura que divide.

Por isso, nenhum socialismo real poderá ser construído sem revolução cultural. Para que o socialismo seja real é preciso que a cultura seja posta em comum.

A revolução não é a fase final de um processo de revolução socialista, mas sim um dos seus fundamentos.

10 de maio de 1975

(Texto lido no I Congresso de Escritores Portugueses)


4 comentários sobre “Poesia e revolução, por Sophia de Mello Breyner Andresen

  1. A Sophia sempre me encanta com suas colocações precisas. Sou-lhes grato por, neste espaço, terem trazido um discurso tão forte e necessária a estes tempos de desesperança no qual se vive. Fascinante o provérbio burundi, e o terceiro dos princípios apontados por ela como íntrinsecos à condição do escritor urge que se cumpra… Assim, quem sabe, escapemos dessa degladiação polar que se tem alastrado na sociedade.

    Excelente texto.

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