
se pensarmos a tradução (segundo a já famosa metáfora) como a foto de uma estátua, sempre capaz de resolver uma parte da sua tridimensionalidade, mas também sempre incapaz de esgotar as possibilidades de visão do original, ficamos com dois belos corolários:
1 – como a foto, a tradução é uma outra arte, que em grande parte vale por si só, mesmo quando aponta para uma obra que tenha um apelo próprio e que não se esgote na foto. o que se busca na experiência com a foto e com a escultura não deve ser resumido na mera correlação de igualdade – é a própria diferença que legitima a existência da tradução e, portanto, uma tradução perfeita não seria de fato tradução.
2 – todo original pede um número infinito de traduções, não só das várias línguas, mas de cada língua. e, ao contrário do que postula benjamin, as traduções reativam o gatilho e pedem, cada uma, novos infinitos tradutórios: a tradução (ou pelo menos a boa tradução) é traduzível, um novo convite ao traduzir.
e assim chegamos à poesia de william carlos williams. o poema the red wheelbarrow é um clássico na sua singeleza, ou melhor, na sua falsa singeleza; & como tal já recebeu um bom número de traduções em português. eu pude achar 4 (josé paulo paes, josé agostinho baptista, haroldo de campos e luís dohlnikoff), que me incentivaram a fazer a minha e a cooptar mais dois tradutores (nosso já conhecido coeditor adriano scandolara e o em breve postado felipe paradizzo).
o plano, é claro, não é fazer uma competição pela melhor tradução do poema. creio que os pontos 1 e 2 deixam isso implícito, mas preferi a redundância para evitar a má fé dos maus entendedores.
mesmo assim, estas 3 novas traduções vêm com uma breve justificativa do tradutor, com o intuito de demarcar sua historicidade, o porquê de uma outra tradução, como ela pode se inserir nesse corpus como nova foto, nova obra.

THE RED WHEELBARROW
so much depends
upon
a red wheel
barrow
glazed with rain
water
beside the white
chickens.
(william carlos williams)
* * *
O CARRINHO DE MÃO VERMELHO
tanta coisa depende
de um
carrinho de mão
vermelho
esmaltado de água de
chuva
ao lado das galinhas
brancas.
(trad. josé paulo paes)
* * *
O CARRINHO DE MÃO VERMELHO
tanta coisa depende
de
um carrinho de mão
vermelho
reluzente de gotas de
chuva
ao lado das galinhas
brancas.
(trad. josé agostinho baptista)
* * *
O CARRINHO DE MÃO MARROM
Tanta coisa depende
desse
carrinho de mão
marrom
reluzindo sob a
chuva
junto às galinhas
brancas.
(trad. luís dohlnikoff)
* * *
CARRINHO DE MÃO VERMELHO
tanto depende
de um
carrinho de mão
vermelho
vidrado pela água
da chuva
perto das galinhas
brancas.
(trad. haroldo de campos)
* * *
CARRIM DE MÃO
tanto depende
de um
carrim de
mão
no verniz da
chuva
entre os frangos
brancos.
(trad. guilherme gontijo flores)
ao analisar o poema, notei que ele se dupliestruturava: por um lado, visualmente, com suas 4 estrofes de 2 versos e sempre uma palavra apenas no segundo verso. porém simultaneamente, uma estrutura melódica dava harmonia ao poema, ele pode ser lido como apenas 2 versos decassilábicos: so much depends upon a red wheel barrow / glazed with rain water beside the white chickens. apesar do alongamento do português, tentei manter esse aspecto rítmico; para tanto, optei pelo oral “carmim” por dois motivos: manutenção do metro (sabendo que certo oralismo não seria completamente estranho à poesia de wcw), e pelo fato de carrim ser um quase anagrama perfeito de carmim, onde poderia estar o “vermelho” desaparecido da minha tradução.
* * *
O CARRINHO VERMELHO DE MÃO
tanto depende
de um
carrinho vermelho
de mão
lustroso d’água
da chuva
ao lado do branco
dos frangos
(trad. adriano scandolara)
“Minha justificativa é a da quebra de versos. Nas 3 últimas estrofes do poema, o Williams cria um esquema de fazer um verso mais longo onde o enjambément cria uma expectativa que não se cumpre totalmente no verso mais curto a seguir. Aí, em vez da roda vermelha (the red wheel), tem-se o carrinho de mão vermelho: o leitor espera uma coisa, mas vem outra, e assim o ritmo da leitura fica mais irregular, meio soluçante. O mesmo vale para a chuva da 3ª estrofe, que não é a chuva caindo, mas uma água de chuva parada, que deixa o carrinho lustroso, e para o branco da última estrofe, que só revela ser das galinhas no último verso e cria um efeito de contraposição de cor com o vermelho do 3º verso.”
* * *
O CARRINHO DE MÃO VERMELHO
Tanto depende
de
um carrinho de mão
vermelho
orvalhado com água
de chuva
ao lado das galinhas
brancas.
(trad. felipe paradizzo)
“Minha tentativa foi reproduzir a relevância da imagem para o poeta norte americano em alguns detalhes da tradução. Acredito haver nas três últimas estrofes, blocos de imagens que se articulam entre si e orbitam “um carrinho de mão vermelho”, além de também oferecem às fortes imagens de WCW singularmente. Por isso, optei por manter o artigo indefinido na segunda estrofe, a fim de marcar a singularidade da imagem poética em questão. Quanto ao “orvalhado” na terceira estrofe, tomei a liberdade de deslocar o sentido da palavra inglesa “glazed”, em busca da imagem cotidiana de Williams, trazendo o adjetivo o mais próximo possível do cenário, da imagem.”
* * *
o convite a novas traduções/justificativas/comentários/críticas fica a partir de agora aberto ao infinito

APÊNDICE: 4 novas traduções.
O VERMELHO CARRINHO DE MÃO
muito depen-
de
um vermelho carrinho
de mão
vitrea da
chuva
ao lado dos brancos
frangos
(trad. leonardo MAthias)
“Procurei destacar, na tradução, o fator relacional entre versos e estrófes, responsável pela mutação nos sentidos da leitura. O peoma parece, a cada palavra posteriormente lida, estar constantemente se auto-descontextualizando. Aínda, foi preciso manter um certo caráter ruidoso, presente no poema original, qual potencializa as possibilidades sintéticas misteriosas, inerentes ao magnetismo estranho de suas peças e espaços.”
* * *
O RUBRO CARRINHO
tanto depen-
de de um
rubro carri-
nho
molhado de
chuva
lá com as gali-
nhas brancas
(trad. rodrigo gonçalves)
“mímese de som e ritmo, imagem e concisão. exercício de sintese. ludus.”
* * *
A CARRIOLA VERMELHA
há muito a pesar
sobre
a vermelha
carriola
lustrada pela
chuva
entre brancos
frangos.
(trad. tarso de melo)
segundo o próprio, “uma tradução injustificável”!
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CARRIM-DE-MÃO VERMEIO
tanta coisa depende
dum
carrim-de-mão
vermeio
moiado da
chuva
do lado dos frango
branco.
(trad. daniel martineschen)
“Sei lá, pensei no que diria um pedreiro (ou eu mesmo na reforma de casa), logo após parar de chover e o sol brilhar de novo, ao ver umas galinhas que saíram pro terreiro pra tomar sol depois da chuva. simplicidade, oralidade (bem curitibana, eu diria), brincadeira sem ofensa. e descaradamente roubei a opção do guilherme por ‘carrim’.”
* * *
guilherme gontijo flores