José Pinto (1988—)

José Pinto (Vila Real, 1988) é poeta, dramaturgo, tradutor, performer e psicólogo; vive hoje em Elgas, Portugal. É autor de três livros; dois de poemas em formato, por assim dizer, tradicional: Humanus (Corpos, Portugal, 2015) e Chá para o nevoeiro (Urutau, Brasil-Galiza, 2021). E de um que resulta de seu trabalho como dramaturgo, o delicado e forte TOCA: oito poemas de amor e uma canção angustiada (UMCOLETIVO, Portugal, 2021), a partir da peça Toca, produzida por umcoletivo em 2019.

Colaborou com a Revista Palavra Comum e na edição, tradução e revisão da Revista Tr3sReinos, ambas na Galícia. Alguns textos seus foram já publicados em revistas e fanzines do Brasil, Cabo Verde, Espanha, Estados Unidos e Portugal; e poemas autorais foram adaptados para melodramas pelo compositor Filipe Pinto (Alemanha).

Pinto tem se dedicado bastante a escrever para teatro, com textos estreados em Cabo Verde e Portugal, o que parece influenciar cada vez mais na sua poesia, com atravessamento de vozes e personas, num modelo de discursividade que guarda um rastro de voz e conversa, ou monólogo interior. É mentor e diretor artístico da Associação txon-poesia (Cabo Verde), que se dedica a atividades em torno da poesia e poética, a partir de uma perspetiva transdisciplinar, intercultural e participada.

Os poemas abaixo são todos inéditos em texto escritos entre 2016 e 2018, quando morava ainda no Cabo Verde, exceto o primeiro, escrito em Portugal neste ano, e o último, escrito durante uma viagem a Guiné-Bissau; esse poema integra um projeto novo, com publicaçõa prevista para final de 2022, ao lado de outros textos sobre a mesma viagem.

Guilherme Gontijo Flores

* * *

Vacilar ou não esquecer

De tempos em tempos, o meu pai conta-me ou eu peço-lhe que me conte como foi o 25 de abril de 1974 pra ele. Ele estava à espera que a aula começasse e estava encostado a uma das janelas da Faculdade de Economia no Porto – chamavam-lhe faculdade vermelha, dos comunistas. Numa questão de segundos, reparou que lá em baixo várias pessoas corriam em direção a polícias, algumas começam a atirar-lhes paralelos (provavelmente arrancados ao chão) e gritam Revolução! Revolução! Ouço esta história, de como o meu pai veio a saber e a juntar-se ao dia em que celebramos a liberdade, com a mesma vontade e tão fascinado como se ma estivesse a contar sempre pela primeira vez.

§

Um chão que sustenha

Que voz vem no som das ondas
que não é a voz do mar?
É a voz de alguém que nos fala,
mas que, se escutamos, cala,
por ter havido escutar.

Que no silêncio
as estrelas guiam até
à aurora enterrada até
raízes de um chão que
por abandonado ser
a si mesmo se refaz.

Cadavre exquis com José Matos Alves

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Correspondência #8

Um trabalho novo esta semana.
Esperava pelo momento há quase um ano.
Sim, deve pôr-se as mãos na massa
antes de se saber liderar. Sim,
deixar funda a vontade de ir ler para a
floresta. Não, não se queixar, claro:
é trabalho. E além do mais, é mais
certo de que há uma propensão
irresistível ao servilismo que roça
um prazer masoquista em ser explorado.
É biológico, digo,
como cagar.

§

Correspondência #5

O ponta de lança corre à volta da bola
na marca da grande penalidade.
Três minutos a correr à volta da bola
na marca da grande penalidade.
Quem tem dúvidas
atrasa a vida de toda a gente.
E quem tem certezas?

§

Correspondência #3

Estilhaços em ramos da árvore alta da floresta.
O sol atingiu a temperatura máxima neste instante e
uns animais recolhem à sombra perto das rochas, perto dum ribeiro.
Há um segredo milenar: as plantas sabem-no.
Quem está distraído põem-se a caçar escaravelhos e
a atirar as beatas dos cigarros para o chão,
dizendo que são biodegradáveis.
Caminhei pelo trilho certa vez, com a cabeça inclinada para baixo:
as fibras dos músculos desfizeram-se em vento e
a um milímetro do abismo, com pés trémulos, pensei em ti.
Uma saudade no centro do peito ascende e derrama a
negritude velada e que olhas de cima a toda a extensão,
que amparas por baixo com as tuas mãos oceânicas,
maternais,
maternas,
mater,
mate,
mat,
ma,
m,
___.

§

Correspondência #1

Da espécie de pássaro que voa solitário ou
Do aguilhão do incomensurável ou
Do traçado circular da fragilidade concêntrica:
dariam bons versos e bons títulos de livros.
Mas isso não seria isso.
Pensa na tristeza ocular antes de uma partida.
Deixar não deixando.
Pensa que quem escreve possa estar a
considerar uma perda completa dos sentidos,
um liberdade última. Susto secreto e
desamor ou não saber amar.
Uma busca pela distância maior do que ar.
E a ponta da navalha a re-ti-rar crostas,
o fio infindo de sangue entre os dedos.
O sol que devia ter nascido hoje.

§

Fronteira
Mauritânia

I

Não saberiam chamar-lhe
hotel e muito menos quarto com
quatro metros quadrados
sem cama e paredes de barro
erigidas a mais de dois metros.

Couberam duas pessoas no chão que
parecia feito para costas.
Um deles não se apercebera
mas já dormia.

Quantos segundos se demora
a atravessar o cinzento líquido
dos sonhos para acordar no deserto?

A fronteira seria transposta
nessa manhã em que notas vocais
se digladiavam em árabe,
na escuridão duma espera.

II

Uma sala ampla e mesas dispersas.
Homens pareciam debater assuntos sérios.
Talvez sobre quando trariam
as suas esposas consigo.

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