Mariana Correia Santos (1996) é poeta, escritora, tradutora e assistente editorial. Nasceu em Guarujá, na Baixada Santista. Vive em São Paulo e cursa graduação em Letras na Universidade de São Paulo (USP), na qual se concentra em estudos de poesia, tradução e sociedade. Participou do Curso Livre de Preparação do Escritor (CLIPE) da Casa das Rosas. Publicou poemas na Revista Lavoura e no projeto Sutura, e traduções na revista catalã sèrieAlfa e nas Notícias de outras ilhas, da Revista Cult. É autora da plaquete independente de poesia espaços íntimos (2019), e já apareceu aqui na escamandro com traduções de Angelina Weld Grimké. marianacorreiasantos.com.
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os monumentos
para Stela do Patrocínio
minha mãe nos levou para vê-los.
boiando, os bebezinhos.
em fatias, macias vitórias-régias,
peles verdes e amarelas.
em pleno nado no escuro.
nas estantes, como os nossos livros.
azeitonas e figos,
os bebês afogados em potinhos.
vida e morte em contemplação
na sala branca do nono andar.
a morte, acrobata presa no salto.
a vida, alergia dos olhos
vermelhos os olhos da neuza
no salão puxando ferro nas cabeças.
cheira igual a neuza, mãe. igual a neuza.
macas geladas na altura dos meus ombros.
os corpos finalmente dormindo.
nus como nunca nem meu pai,
os homens azul-escuros.
para estudo.
são mendigos, conta minha mãe,
o jaleco amoroso da autoridade.
e esse cheiro? é o líquido
que dá eternidade aos perdidos.
o homem cor de noite,
seu rosto ausente e seu pinto escuro.
instrumento. histórico.
moço, você sabia que pode ficar eterno
depois de morto?
§
monólogo de encerramento
para R.
“onde o lugar das palavras que esquecemos?”
josé luís peixoto
te ver entre as minhas coisas mexeu comigo.
não previ o efeito dos olhos mais lentos
e de repente esquivos.
te ver entre a matéria e as formas
que todos os dias consolidam
minha presença em resposta a mim:
as páginas do caderno que me consomem
o pó de café que me acaba
o meu assalto de livros sobre a mesa de centro
que você tocou e me observou
toda uma, que me interroga.
tudo mexeu comigo: fui calando.
.
e não sei dizer por que me mexeu tanto.
você, talvez um novo ser em órbita
que me provasse meu existir
pela resposta,
seus olhos à espera dos meus:
homem. aqui. quente, vivo.
bonito. e bonito.
é coisa de quem não se sente sólida.
inteira. permanente.
de quem só sabe sentir aos dedos
e se convence
pelas impressões que deixam
nas páginas.
.
fui calando
me movendo na surdina de mim.
lava, areia movediça.
não havia onde mais me esconder.
o seu olhar, agora, de pontos finais.
não mais das promessas, mas da testa sólida do real
– e você me conhece tão pouco,
não sabe como lido mal
com a qualidade maciça de ser, ainda que seja desejo.
os ouvidos do bar e da praça e das ruas do centro
longe por algumas paredes.
como a promessa gostosa dita há mês.
mas não promessa: o real. e tão corajoso, você.
não havia onde mais me esconder.
sem cerceios onde me escorar,
brincando de afastar e aproximar.
as luzes sobre mim agora
as do meu abajur.
§
teoria
o limite do mundo é este –
a linha horizontal
da lateral de uma mesa de cozinha
aqui se resguarda o humano
retira-se o herói o tirano
o espetáculo
naturezas-mortas ignoram
o impulso pela grandeza
aqui há uma mesa
um gesto curvo um ritual
todos os homens comem
todos os homens se rendem
à lateral de uma mesa de cozinha
as cores são o ponto de toque
as cores te absorvem como
absorvem uma criança
nenhum laranja é tão cítrico
nenhum preto tão ocluso
quanto numa pintura de vasos
ignorada numa terça à tarde
pelas salas do masp
zurbarán envelhece
distante na parede privada
e eu, uma criança com tédio
zurbarán não sabe
que ensinou a armadilha das cores
a tantas outras telas
§
a intensidade das crianças deixadas a sós
aí, ele quis brincar de encarar
eu já queria que tivesse sido
uma artimanha
para entranhar nossos olhos
descarregar algo subentendido,
restrito às pupilas
e às íris castanhas
mútuas
tão tímido e subliminar
sublinhando o nervoso
com um riso
de quem brinca de ciranda
dando a meia volta
naquele encanto escuro
enquanto a claridade do dia
me doía
os olhos fotofóbicos
saí sem entender
quando a brincadeira começou
lembro do sol das quatro
o pó daquele bairro largado
o medo de permanecer ali
são incríveis as histórias de amor que criamos
em lugares sólidos demais
§
isto que já parece noite
hoje o céu é preto e velho.
morrerá logo.
e eu sei que fico aqui
até mais tarde
ao lado da cova aberta do dia
prolongando algo que valha
do corpo morto.
admirando a luz,
o calor, o tempo
que perdi.
incapaz de ceder
à hora certa de ir dormir.
e ao finalmente dormir,
reenceno a perda.
para sempre perdendo.
numa falta tão doce
muito mais doce
que encerrar um adeus.
*
Pingback: Mariana Correia Santos — escamandro – SUMIÇO
bem espantado, muito bem mesmo – quadros contados de reler muito – tomara que um tanto fingidora dada a dor de fundo – ainda que não a dela, bela.