Ana Guadalupe nasceu em Londrina, Paraná, em 1985. Poeta e tradutora, tem publicado relógio de pulso (7letras, 2011) e não conheço ninguém que não seja artista (confeitaria, 2015), com fotos de camila svenson e edição de fabiane secches.
Abaixo, alguns poemas de seu mais recente livro, Preocupações, publicado pela Edições Macondo em 2019.
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VAMOS PERDER O CONTATO
vamos perder o contato
já que não há motivo para mantê-lo
por meio de encontros e recados
se a cada dia acordamos outro
e não vamos manter nem em sonho
nosso outro de ontem
outrora foi mais fácil
cortar os laços todos
vamos retomar e perder o contato
só no arquivo permanente do passado
o outro ficará pra sempre guardado
prêmio que apenas antecipamos
cromo raríssimo
pacote intacto
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CASAS
numa casa com aluguel atrasado
falamos da chuva de granizo
numa casa movediça
o despertador toca mais cedo
de uma casa com incêndio
você talvez não saia a tempo
numa casa no deslizamento
morremos pensando que pena
numa casa pequena
não cabem os panos de prato
sem uma casa arejada
você cheira a cachorro molhado
numa casa sem amor
todos arrumam outros planos
numa casa às pressas
tem coisas que você deixa
numa casa por ano
é melhor nem abrir essas caixas
*
MORRI
morri
pouca gente apareceu
caixão aberto, batom
seco
três
amigos fizeram homenagem
enquanto despedaçava a
terra
segui
alguns andando pela rua
minutos depois do
enterro
ouvi
quando disseram
que nunca me conheceram
a fundo
*
MAU HÁLITO
quando amamos quem tem mau hálito
todo beijo é generoso e esforçado
ainda que com o tempo
surja um prazer genuíno
no perfume do pão
de anteontem com café
de ontem
depois de muitos anos
quando quem se ama
já morreu
basta passar com energia o fio dental
para projetar
no ar
o sangue
e o rastro de tártaro
que hoje são o corpo do ser amado