Cecília Floresta afrodescende, é escritora, candomblezeira & sapatão. nasceu na capital paulista numa dessas manhãs de dezembro, fazia sol e o ano era 1988. ganha a vida editando livros, pesquisa narrativas e poéticas ancestrais iorubás e seus desdobramentos na diáspora negra contemporânea, lesbianidades e literaturas insurgentes. tem editados os poemas crus (Patuá, 2016) e a zine genealogia (móri zines, 2019). já apareceu na escamandro com outros 3 poemas. os poemas abaixo integram a zine genealogia(série de 12 poemas + ilustras).
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dona Rosa
eu sou a minha vó
mesmo aqui escrevendo
que dona Rosa em grande parte de sua vida
não sabia ler nem escrever como os outros
embora fosse dada a outras leituras
eu sou a minha vó
que calejou mão
trabalhando na roça
cansou de passar fome e sei lá mais o quê
ao lado do marido
largou o homem
e veio pra São Paulo
com três filhos nas costas
eu sou a dona Rosa
que sabia de cor todas as folhas do quintal
e da rua também
de onde tirávamos suas mudas
no caminho de volta da escola
quando ia me buscar às vezes
fazia remédios com elas
me bendizia
me curava
amarrava fita vermelha no meu pulso
enquanto ambos os dela
eram quebrados & doíam em dias frios
quando se ocupava em lavar a própria roupa
e também a dos outros
não sei em quantas casas trabalhou
antes de se aposentar
e passar as tardes costurando
me observando por cima dos óculos
e contando histórias de causos fantásticos
que aqui não têm lugar
porque nossos olhos & ouvidos
já não funcionam
com o trabalho caótico da cidade grande
dona Rosa me ensinou a fazer cuscuz e a consumir
ovos
peixe &
frango
no café da manhã
porque sempre diária árdua depois das seis
e tempo nenhum pra almoçar
§
leitoras
pós-trabalho embora
só quisesse mesmo era estender as costas
a mãe me ensinou a ler com um gibi
e tanto leu que eu decorei os balões de fala
antes que o livreto desistisse da capa
que parou não sei onde foi
também não sei até que ponto seria possível
este poema pra minha mãe:
se ela não tivesse lido tanto aquele gibi
onde é que eu estaria agora?
§
mãe cujos filhos são peixes
odoyá
fez de ondas salgadas meu orí
deu pernas fortes pra eu nadar
e ainda me abre os caminhos
por onde ando
diz que iabá nasce já
de orelha em pé nos feitiço
tecnologia ancestral que derrubou
& vai derrubar
muita mas muita casa grande
odoyá
me ensinou a ser peixe
e a respirar fundo
até dentro d’água
contou também que iabá
é ligeira no ato:
presta não atenção
pra ver no que dá
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