
A história de Rose Ausländer ecoa a de milhares. Nascida no multifronteirístico Império Austro Húngaro, mais precisamente na região de Bucovina (entre o que hoje é a Romênia e a Ucrânia), em uma família de origem judaica da comunidade de língua alemã e iídiche da região, a poeta logo parte para os Estados Unidos com o objetivo superar a crise financeira que viviam os seus pais. Retorna a Bucovina no final dos anos 20, devido a um adoecimento da mãe, e depara-se logo de cara com os primeiros movimentos do horror nazista. Impedida de deixar Bucovina, sobrevive à ascensão do nazismo e à Segunda Guerra Mundial escondendo-se, com a mãe, em guetos da região. Já em 1946 parte novamente para os Estados Unidos, onde se estabelece por cerca de 20 anos e corta relações com a lírica moderna alemã, deixando não só de ler a poesia contemporânea em alemão como também de escrever no idioma, passando a compor em inglês. Vivendo em Nova York, Ausländer aproxima-se de nomes importantes do modernismo norte-americano tais como: Robert Frost, William Carlos Williams, T.S Eliot, E. E. Cummings… e também trava relações com a poeta Marianne Moore, uma forte influência para Ausländer. Apenas no final dos anos 50, bastante motivada por um encontro com o conterrâneo e companheiro de juventude, Paul Celan, Ausländer volta paulatinamente a escrever em alemão. Em 1967 retorna definitivamente à Alemanha e à lírica alemã, falecendo na cidade de Düsseldorf em 1988.
A trajetória errante da poeta é um dos motivos que atravessam o seu trabalho poético. A origem judaica, a relação conflituosa com o alemão, o exílio, a vivência nos Estados Unidos são experiências que se entreveem em uma poesia que jamais nega a língua, mas sempre a coloca em desconfiança, em uma relação de deslizar constante. Partindo da discussão adorniana sobre a possibilidade de fazer poesia após Auschwitz, Ausländer parece dizer que sim, pois “as palavras me ditam: escreva-nos”[1]. Escrever não é apenas um gesto necessário, mas incontrolável na medida em que o escrever escreve-se no escritor. Porém, estendendo a discussão, qual é então a possibilidade de escrever poesia em alemão após Auschwitz? Como escrever poesia na mesma língua de uma máquina de genocídio moderno? Como escrever em sua língua materna, mas que é também a língua que tentou te matar? Aqui as relações e vínculos se tornam mais delicados e conceitos unificadores como pátria e língua materna não parecem dar conta das relações sensíveis que a poesia estabelece com a linguagem. Nesse sentido, o trabalho poético de Rose Ausländer é também um gesto de testemunho e resistência. Testemunho das complexas relações sensíveis com as noções de território e língua, da experiência histórica-subjetiva e da memória, e resistência na medida em que as próprias noções de território e língua são colocadas em desestabilidade e diferença, em que o escrever em alemão jamais deixará de ser escrever na língua do nazismo, do horror, porém pode vir a ser também outra coisa, outras coisas. Em tempos em que estratégias de manipulação do discurso estão explícitas, apontando que modos de dizer não são somente modos diferentes de falar, mas de agir, Ausländer abre uma imprescindível reflexão sobre a palavra e as relações que com ela incessantemente construímos (e também destruímos).
Os poemas aqui
selecionados são de diferentes fases da poeta, mas mantém elos em comum. Todos
eles foram retirados do livro Rose
Ausländer – Gedichte (Fischer Verlag, 2012), coletânea organizada por
Helmut Braun e que contempla parte considerável da produção poética da autora,
que no total contabiliza mais de três mil poemas escritos.
[1] “Weil Wörter mir diktieren: schreib uns”, trecho do ensaio Alles kann motiv sein da autora.
Zwischenzeilwort
Viele Gedichte gefunden
aber
Ich suche das Wort
Zwischenzeilwort
im bunten Buchstabentanz
Konsonanten Vokale
Vokabeln ich taste
die Weite und Tiefe
der Wörter
suche erfinden
das verstohlene
Wort
Palavra entre-linha
Muitos poemas encontraram
porém
Eu busco pela palavra
A palavra entre-linha
Na alegre roda da letra
Consoantes vogais
Verbetes tateio
a amplidão e o abismo
das palavras
procuro atinar
a furtiva
palavra
§
Mutterland
Mein Vaterland ist tot
sie haben es begraben
im Feuer
Ich lebe
in meinem Mutterland
Wort
Mátria
Minha pátria morreu
a enterraram
no fogo
Eu vivo
na minha mátria
Palavra
§
Ich vergesse nicht
Ich vergesse nicht
das Elternhaus
die Mutterstimme
den ersten Kuß
die Berge der Bukowina
die Flucht im ersten Weltkrieg
das Darben in Wien
die Bomben im zweiten Weltkrieg
den Einmarsch der Nazis
das Angstbeben im keller
den Arzt der unser Leben rettete
das bittersüße Amerika
Hölderlin Trakl Celan
meine Schreibqual
den Schreibzwang
noch immer
Eu não me esqueço
Eu não me esqueço
da casa dos pais
da voz da mãe
do primeiro beijo
dos montes de Bucovina
da fuga na primeira guerra
da penúria em Viena
das bombas na segunda guerra
da marcha nazista
do tremor no porão
do médico que salvou nossa vida
da agridoce América
Hölderlin Trakl Celan
minha aflição em escrever
a obsessão em escrever
de novo e de novo
§
Wer bin ich
Wenn ich verzweifelt bin
schreib ich Gedichte
Bin ich fröhlich
schreiben sich die Gedichte
in mich
Wer bin ich
wenn ich nicht
schreibe
Quem sou eu
Em desespero,
eu escrevo poemas
Quando contente,
os poemas se escrevem
em mim
Quem sou eu
Quando não
escrevo
§
Sätze
Kristalle
unregelmäßig
kompakt und durchsichtig
hinter ihnen die Dinge
erkennbar
Diese Sucht
nach bindenden Worten
Satz an Satz
weiterzugreifen
in die bekannte
unbegreifliche
Welt
Frases
Cristais
irregulares
compactos e transparentes
detrás de si as coisas
reconhecíveis
Essa busca
pelas palavras atadas
frase na frase
apalpando apalpando
no conhecido
impalpável
mundo
§
Spiel
Treibst dein Spiel mit mir
Sprache
schon spielst du mir manchmal
mit
Spiel mit mit
ich bin alt
nicht älter als du
Traumwort
Finger
Augen
Worte
unendlicher Spielraum
Spiel mit mir
ich bin jung
nicht jünger als du
Traumwort
Wer spielt uns auf
wenn ich mit dir
mein Spiel treibe
du mich verspielst
an die Nacht
Jogo
Língua
conduza seu jogo comigo
às vezes você joga seu jogo
comigo
Jogue comigo
sou velha
não mais velha do que você
Verbonírico
Dedos
Olhos
Palavras
infinito jogo de dados
Jogue comigo
sou jovem
não mais jovem do que você
Verbonírico
Quem nos toca
quando eu jogo
meu jogo contigo
você me joga
para a noite
§
Was du nicht weißt
Als wüßtest du
woher
Als wüßten Wasser Sterne Luft
Was du nicht weißt
erschafft
dein Wort
unwissend
sicher
O que você não sabe
Como se você soubesse
da onde
Como se soubessem água estrelas ar
O que você não sabe
cria
sua palavra
desconhecida
segura
§
Mein Gedicht
Mein Gedicht
ich atme dich
ein und aus
Die Erde armet
dich und mich
aus und ein
Aus ihrem Atem geboren
mein Gedicht
Meu poema
Meu poema
te respiro
inspiro e expiro
A terra respira
eu e você
expira e inspira
Do seu respiro nasce
meu poema
§
Nicht vergessen I
Heute
hat ein Gedicht
mich wieder erschaffen
Ich freute mich
am Leben
bewunderte die Landschaft
vor meinem Fenster
Ich vergaß
das Gedicht zu schreiben
vergaß es
Es hat mich
nicht vergessen
kam zurück zu mir
und schrieb sich
in meine Worte
Não esquecer I
Hoje
um poema
novamente me criou
Me alegrei
com a vida
admirando a paisagem
da minha janela
Eu esqueci
de escrever o poema
esqueci
Ele não
esqueceu
veio logo até a mim
e se escreveu
nas minhas palavras
§
Mutter Sprache
Ich habe mich
in mich verwandelt
von Augenblick zu Augenblick
in Stücke zersplittert
auf dem Wortweg
Mutter Sprache
setzt mich zusammen
Menschmosaik
Língua mãe
De momento em momento
eu me transformei
em mim mesma
Estilhaçada em pedaços
no palavrandar
Língua mãe
me reconstrua
Mosaico-humano
§
Miteinander
für Marie Luise Kaschnitz
Du
und der Kirschbaum
und die rasende Straße
und der Ozean
und der Blitz
Du
und deine Angst
und dein Zorn
und dein Aberglaube
und dein Glaube
“Let My People Go”
Du
und der Stern
und das Wort Stern
und das Hauptwort
un das Nebenwort
und das Nebeneinander
und das Miteinander
und
du
Convivência
para Marie Luise Kaschnitz
Você
e a cerejeira
e a rua rápida
e o oceano
e o relâmpago
Você
e o seu medo
e sua cólera
e sua superstição
e sua crença
“Let My People Go”
Você
e a estrela
e a palavra estrela
e a palavra principal
e a palavra auxiliar
e a coexistência
e a convivência
e
você