Leonardo Chioda (Jaboticabal, 1986) é formado em Letras pela Universidade Estadual Paulista. Estudou literatura, história do teatro e língua italiana na Università degli Studi di Perugia e atualmente é aluno de mestrado em poéticas de expressão portuguesa na Universidade de São Paulo. Devido a palestras e ensaios sobre simbologia e as relações com a literatura, o cinema e a cultura popular, é um dos principais expoentes do Tarot no Brasil. Publicou Tempestardes (Patuá, 2013) e está em revistas e antologias virtuais e impressas. Os poemas a seguir são do seu segundo livro, POTNIΛ (Selo Demônio Negro + Hedra, 2017), apresentado na 15ª edição da Flip – Festa Literária Internacional de Paraty.
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PARA CANTAR BASTA UM PUNHADO DE ALMA
para cantar basta um punhado de alma
custa pouco para ver o halo da frase
— alta argamassa dos marfins do corpo
que liga as águas entre sismos
que leveda
e se volta às quatro direções
crescendo [quente] feito um alicerce
ou o neon
aceso à vontade
basta uma frase que pulsa
por isso cantar — para abrir com a voz
a massiva mão à obra
enchendo de luz as valas da alteza:
os tronos repletos de nomes
os nomes repletos da víscera
cantar a alma da frase me cabe na mão
§
APRENDE O AMOR COMO ANIMAL INVENCÍVEL
aprende o amor como animal invencível
— forjado no inferno
a impulso e miragem de quem o escreve
ele come os fortes
ele cospe os fracos
oh pós-graduados em medo
deixai toda sabedoria
vós que entrastes na batalha:
a imagem cristalina — longa e amante
que ronda cada pedaço divino da casa:
ele soma os fortes
ele cobre os fracos
porque o amor
quando avança a cara na direção das heras
não poupa nada:
abre o inferno a pão e água — um poema
§
POSSESSIO MARIS
navegadores antigos tinham uma frase gloriosa
por isso devo reparar as empenas do barco
amar a vida desde a nervura
na beira da fúria
a sangue e a ópio — a esmo
no trópico doloroso
é preciso
e se um pirata consente em perder as barbas
se meu nome fosse espelho demônio ou fábula
mesmo quando disserem ‘está morto
e esta é sua obra’
devo manobrar à terceira margem
deixar cartas para o galeão mais próximo
ler e reler as iluminuras
com a mão destra — imperecível
tomo a ranhura do sonho
nele me edifico: o sal arde nas veias
e há um tesouro eversivo nos vocábulos
porque é uma arte mística
[à deriva]
com a mão rutilada de escrita
— de água velha sorvida a dédalo
se afunda
se renova
§
ENCANTO XIV
nem as tuas leis
os teus decretos
a tua longa missão pelos cabos
é tudo em vão
voz nenhuma se põe
à nossa língua morta
e nos damos para que saibas:
da sombra do mar tu és parte
e não te vês
ainda que não ouças
na tormenta persiste
desce à a nossa língua longa
§
ENCANTO XXIX
rimos tanto
tanto rimos
talvez rir seja tão antigo quanto nós:
assíduas e alvas leitoras do homem
rir nos alastra: bradamos em festa
pela tua insensatez de navegador
deitastes com tantas e ainda assim
nada sabes de amor
anseias pelo retorno para desfilar pela cidade
e à força reter a esposa
mas qualquer búzio nos dá o futuro
o presente e um renome claro:
penélope! — sabemos
perfeita aos prazeres com os varões calados
e rimos
porque goza a rainha
em colos de meninos
no tesão e fúria tanta
e rimos
mesmo que voltes
que mates a todos — penélope governa
[sem ti] o palácio desde a entranha
§
PATHOS
não se pode medir os três lábaros:
os provérbios do fogo — um homem apaixonado
e a mulher [dona de todos]
§
MOIRA
e se o barco atinge o mistério e só uma sereia escapa
ela semeará em novo mar o velho cântico
— será ela a própria odisseia
§
ÂMNIO III
tanto que se tudo no mundo existe para chegar a este livro
leva o mênstruo da terra
para dentro do pântano
para o vento dos fogos
para o centro da víscera
que a água suba à cintura
e constelada volte à boca
então a última palavra do livro
faz a primeira palavra de outro
era uma vez o mundo que vem ao livro
e assim reflui a estrada
na raiz líquida: vítreo volume estrondo [lavado ao extremo]
tão rente ao cerne
à água tudo torna — a eterna incólume
*