Apenas a Ponta do Ice(Gins)berg
Escrevo este texto sobre o Ginsberg por causa das traduções que fiz de seus poemas. As boas traduções, em língua portuguesa, a que tive acesso foram as do Claudio Willer e do Paulo Henriques Britto. Li-as mesmo antes de conhecer o texto no original, por essa razão havia para mim dois Ginsberg. Daí comprei os volumes da City Lights, pequenos e bonitos. Resolvi os ler um atrás do outro, de novo e de novo, para esgarçá-los. Pronto, alguns poemas me falavam alto demais, num bom sentido; depois de escolhidos, comecei a vertê-los para o português. Passei a julgar que poderia haver um Ginsberg meu, em português, o do Willer me parecia nervoso e o do Britto muito sofisticado. O meu seria dotado de pressa constante, como um eterno estilo de juventude, aliado a uma demoníaca e inexplicável maturidade congênita. Um jovem velho. De modo que estaria viva nele a vontade de dizer antes que as coisas se dissolvessem, de tal forma que seria imperioso, para ele, esse meu Ginsberg, dar um jeito para estar pronto para dizer, sem ser dissolvido pela tarefa, ou, que seja, mesmo aceitando o risco.
A empreitada da tradução, devo dizê-lo, tem sido apenas a ponta do meu ice(gins)berg. Encontrei no Ginsberg elementos harmônicos com o meu ceticismo, ele realiza, de forma desorganizada, descobertas que para mim se deram de forma um tanto linear. Ele realiza um percurso violento para ter coisas que vieram a mim de forma calma. Como seria se tornar cético depois de tanta errância? A lida com o judaísmo, os exercícios de redução do ego pelo budismo, o respeito à consciência pelo atravessamento das drogas lisérgicas, a presença da sedução na prática do ensino e as evidências da virtude na conjugação do estabelecimento de regras com a admissão de costumes menos restritivos no concernente à sexualidade e à moral familiar.
As cartas trocadas entre Ginsberg e seu pai me fariam refletir, como não poderia deixar de ser, sobre a relação com o meu próprio pai. Além da descoberta, no vínculo entre os dois, de uma abissal crueldade do pai contra o filho. O meu ceticismo, até o momento pelo menos, nunca me levou a ter um Walden para chamar de meu, como realizou para si Ginsberg, mas a vida retirada e as modificações do corpo pela realização física de alguma coisa, como cortar madeira no caso dele, para mim fez todo o sentido, na beleza da antianatomia que o corpo pressupõe e guarda. Até o momento, a omissa relação de Ginsberg com a doença psiquiátrica da sua mãe, foi um dos pontos mais tensos da minha relação com o poeta. Os poemas que expõem esse conteúdo sempre me fizeram chorar, antes mesmo que eu soubesse muita coisa sobre o assunto. Além do que a minha própria infância em hospitais psiquiátricos era trazida à tona nas leituras. Não lembro de outro poeta que tenha me feito retornar a esses conteúdos dessa forma.
N’algumas fotografias da sua juventude, por vezes, acho-nos parecidos, e torço para que fiquemos bem diferentes na velhice, se eu a tiver. As traduções que fiz, a despeito da minha vontade, tomaram-me um tempo imenso, e, apesar de fazê-lo há algum tempo, são as primeiras que torno públicas. No início do trabalho com o Ginsberg o meu intuito era de promover uma imperiosa recriação, como dita em tanto livros de teoria que admiro, no fim, acho que fui amansando, deixei estar, pelo menos dessa vez. O mais difícil foram as gírias. Nunca tive vivência cotidiana em língua inglesa, muito menos dos redutos aos quais os poemas remetem, e conversas eruditas não contaram como experiência prévia, então precisei suprir a deficiência com muita pesquisa. O mais divertido foi imaginar as dinâmicas anatômicas de todos os poemas de conteúdo erótico, cuja atração exercida em mim por ser sentida na razão implícita das minhas escolhas.
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Este texto pode ser lido como introdução ao que se encontra na apresentação do da edição 9 do Caderno-Revista de Poesia 7faces, que foi dedicado ao Allen Ginsberg: http://www.revistasetefaces.com/2014/08/7faces-caderno-revista-de-poesia-ano-v.html .
Um evento de leituras dessas traduções pode ser assistido: https://youtu.be/bfUqN6o3rsM?list=PLNfq2Fv5vuWSwqieFd-gFOwfSi8AGiaGe .
Um especial agradecimento deve ser feito ao Guilherme Gontijo Flores, que não só escreveu um texto introdutório ao número que a 7faces lançará com essas e mais traduções de poemas do Ginsberg, como anotou o trabalho e nos ofereceu correções e belas sugestões.
Cesar Kiraly
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The Reply
God answers with my doom! I am annulled
this poetry blanked from the fiery ledger
my lies be answered by the worm at my ear
my visions by the hand falling over my eyes to cover them
from sight of my skeleton
my longing to be God by the trembling bearded jaw flesh
that covers my skull like monster-skin
Stomach vomiting out the soul-vine, cadaver on
the floor of bamboo hut, body-meat crawling toward
its fate nightmare rising in my brain
The noise of the drone of creation adoring its Slayer, the yowl
of birds to the Infinite, dog barks like the sound
of vomit in the air, frogs croaking Death at trees
I am a Seraph and I know not whither I go into the Void
I am a man and I know not whither I go into Death – –
Christ Christ poor hopeless
lifted on the Cross between Dimension –
to see the Ever-Unknowable!
a dead gong shivers thru all flesh and a vast Being enters my
brain from afar that lives forever
None but the Presence too mighty to record! the Presence
in Death, before whom I am helpless
makes me change from Allen to a skull
Old One-Eye of dreams in which I do not wake but die –
hands pulled into the darkness by a frightful Hand
– the worm’s blind wriggle, cut – the plough
is God himself
What ball of monster darkness from before the universe come
back to visit me with blind command!
and I can blank out this consciousness, escape back
to New York love, and will
Poor pitiable Christ afraid of the foretold Cross,
Never to die –
Escape, but not forever – the Presence will come, the hour
will come, a strange truth enter the universe, death
show its Being as before
and I’ll despair that I forgot! forgot! my fate return,
tho die of it –
What’s sacred when the Thing is all the universe?
creeps to every soul like a vampire-organ singing behind
moonlit clouds –
poor being come squat
under bearded star in a dark filed in Peru
to drop my load – I’ll die in horror that I die!
Not dams or pyramids but death, and we to prepare for that
of ants and wind, & our souls to prepare
His Perfection!
The moment’s come, He’s made His will revealed forever
and no flight into old Being further than the starts will not
find terminal in the same dark swaying port
of unbearable music
No refuge in Myself, which is on fire
or in the World which is His also to bomb & Devour!
Recognize His might! Loose hold
of my hands – my frightened skull
– for I had chose self-love –
my eyes, my nose, my face, my cock, my soul – and now
the faceless Destroyer!
A billion doors to the same new Being!
The universe turns inside out to devour me!
and the mighty burst of music comes from out the inhuman
door –
1960
Kaddish and Other Poems. p. 96-98.
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A Resposta
Deus responde com a minha ruína! Eu estou anulado
esta apagada poesia do livro ardente
minhas mentiras respondidas pelo verme em minha orelha
minhas entre vistas pela mão caída para o cobrir os olhos
da visão do meu esqueleto
meu desejo de ser Deus pela encarnada mandíbula de barba tremulante
que cobre meu crânio como a pele de um monstro
Estômago vomitando a alma-videira, cadáver sobre
o chão da cabana de bambu, corpo-carne rastejando até
seu destino pesadelo ascendente em meu cérebro
O ruído da criação adorando seu Portento, o uivo
dos pássaros ao infinito, o cachorro late como o som
do vômito no ar, sapos coaxando Morte nas árvores
Eu sou um Serafim e não sei para onde Eu adentro o Vazio
Eu sou um homem e não sei para onde Eu adentro a Morte – –
Cristo Cristo pobre desesperançoso
levantado na cruz entre Dimensão –
para ver o Eterno-Incognoscível!
um gongo morto arrepia a carne e um vasto Ser de longe penetra
meu cérebro que vive para sempre
Apenas a Presença toda poderosa se inscreve! a Presença
na morte, diante da qual estou indefeso
muda-me de Allen em crânio
Velho Caolho dos sonhos nos quais não acordo senão morto –
mãos puxam para a escuridão por uma temível mão
– os vermes cegos contorcem, corte – o arado
é ele mesmo Deus
que baile de monstra escuridão de onde o universo vem
de volta para me visitar com comando cego!
e eu posso apagar essa consciência, retornar
para o amor New York, e vou
Pobre lamentável Cristo medroso na antevista Cruz,
Nunca Morrer –
Escapar, mas não para sempre – a Presença virá, a hora
chegará, uma estranha verdade vem ao universo, morte
mostrará seu Ser como antes
e me desesperarei porque eu esqueci! esqueci! meu destino retorna,
para morrer disso –
O que é sagrado quando a Coisa é todo o universo?
assusta toda alma com um órgão-vampiro cantando atrás
de nuvens enluaradas –
pobre ser venha agachado
debaixo duma estrela barbuda numa escuridão posta no Peru
para soltar minha carga – Morrerei de tanto medo de morrer!
Sem barragens ou pirâmides mas morte, e nós preparados para ela
das formigas e vento, & nossa alma para preparar
Sua Perfeição!
O momento chega, ele revela para sempre sua vontade
e nenhum vôo ao velho Ser vai além das estrelas
encontrar por fim no mesmo velho trêmulo pórtico
de música insuportável
Nenhum refúgio em mim, que estou em chamas
ou no mundo que é dele também para bombas & devoração!
Reconhece Seu poder! Escapa
das minhas mãos – meu apavorado crânio
– eu tinha que escolher amor-próprio –
meus olhos, meu nariz, meu rosto, meu pau, minha alma – e agora
o Destruir sem Rosto!
Um bilhão de portas para o novo Ser!
O Universo vira do avesso para me comer!
e o poderoso estrondo da música vem sai da porta
inumana –
1960
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On Burroughs’ Work
The method must be purest meat
and no symbolic dressing,
actual visions & actual prisons
as seen then and now.
Prisons and visions presented
with rare descriptions
corresponding exactly to those
of Alcatraz and Rose.
A naked lunch is natural to us,
we eat reality sandwiches.
But allegories are so much lettuce.
Don’t hide the madness.
San Jose 1954
Reality Sandwiches. p. 40.
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Sobre a Obra de Burroughs
O método deve ser carne pura
e nenhum tempero simbólico,
prisões reais & visões reais
como se viu antes e agora.
Visões e prisões apresentadas
com descrições raras
correspondentes exatas àquelas
de Alcatraz e Rosa.
Um almoço nu nos é natural,
comemos sanduíches de realidade.
Mas alegorias são apenas verduras.
Não esconda a loucura.
San Jose 1954.
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Scribble
Rexroth’s face reflecting human
tired bliss
White haired, wing browed
gas mustache,
flowers jet out of
his sad head,
listening to Edith Piaf street song
as she walks the universe
with all life gone
and cities disappeared
only the God of Love
left smiling.
Berkeley, March 1956
Reality Sandwiches. p. 59.
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Garatuja
O rosto de Rexroth reflete a cansada
bênção humana
Cabelos brancos, asa-délticas sobrancelhas
bigode boquirroto
flores escapolem da
sua triste cabeça,
ouvindo as canções citadinas da Edith Piaf
enquanto ela caminha no universo
com toda a vida ida
e cidades desaparecidas
apenas o Deus do amor
restou sorrindo.
Berkeley, Março 1956
(Allen Ginsberg, trad. de Cesar Kiraly)